Pega na bicicleta e vai!



Imagina que a vida que vives é apenas resultado da tua imaginação.
            Pega na bicicleta e vai! Se esta realidade não doesse tanto estarias bem.
            Esfrega os olhos. O monstro morrerá e tu serás quem és. Melhor que tu. Melhor que a realidade aparente.
            No teleférico, Huyen esfrega os olhos. A cobra arranca-a do pesadelo. O canyon de Chicamocha que a separa da Mesa de Los Santos devolve-a ao banco que partilha com outra viajante. Huyen. Predadora, como a cobra a descascar que a visitou. Não é a televisão que está à sua frente. É um vale assombroso e belo que a janela do teleférico lhe mostra. Cores vívidas, o verde mais verde que a chuva refrescou. Arriscaram, as duas mulheres. Huyen e a outra viajante anónima, que a convidou para passar o dia no Parque Nacional de Chicamocha. Atravessaram o canyon na cápsula presa por cabos. "Sê forte e vem comigo", seduziu a viajante que Huyen ainda desconhecia. Sem reagir, pensou de si para si não necessitar que a desafiem com palavras como "sê forte".
            Aterrou na Costa Rica três meses antes. Inicialmente, a sua intenção era permanecer um mês nesse pequeno país que se encontra no topo dos países com a população mais feliz. Mais feliz. Não necessariamente com melhor qualidade de vida. Essa, dizem as estatísticas vive-se nos países do norte da Europa. É pena que também seja nesses países que a taxa de suicídio seja das mais elevadas.
            Caminhou pela Costa Rica e foi muito feliz, desfrutando das praias, das pessoas aparentemente sempre felizes, sobretudo para os turistas. Dormiu em 'hamacas' à beira-mar. Contemplou Centauro por entre as constelações que o céu estrelado lhe oferecia.
            Vislumbrou a cobra. Foi mordida! O sonho tornou-se realidade no país onde o verde contrasta contínua e fortemente com o azul. Ficou prostrada. O veneno era enfim potente. Insuficiente para a arrancar desta existência terrena. O suficiente para lhe picar o inconsciente. A viagem que empreendera era afinal uma farsa.
            Recomeçou. Comprou uma bicicleta em segunda mão, juntamente com alforges. Verificou a mala com que saíra de Boston. Trocou a mala e as roupas que então se denunciavam excessivas por calções robustos, um capacete e uma tenda. Partiu de San Jose e fez-se à estrada. Pedalou. Pedalou. Sempre só. Olhos na estrada. Pernas pedalando num movimento cíclico. As subidas não a demoveram. A chuva tropical tão-pouco. Acampou no Panamá. O alfaiate é um mito. Uma história para americanos, como ela, se entreterem.
            Huyen é americana de nacionalidade. A sua origem, Ho Chi Min. Ainda em Saigão, a pobreza predadora e o desejo dos pais por uma vida melhor, transportaram-na para o país onde todos os sonhos, dizem, se tornam realidade. E com efeito, Huyen vivia um sonho.
            Pedala. Limpa o pó. A realidade vai-se tornando um pouco mais real. Os gémeos vão engrossando, as coxas tornando-se mais fortes. Mais fortes, menos largas. Largas são as três irmãs mais velhas e sedentárias. Com o açúcar, o sal e a gordura do McDonald's a sufocar as veias e as artérias.
            Huyen acordou. A mordedura da cobra arrancou-a do sono. Pairava no fascínio resplandecente dos muito felizes costa-riquenhos.
            Numa praia cálida do Panamá conheceu um holandês - Jonathan, um homem de trinta e cinco anos. Mais novo cinco que Huyen, Jonathan espraiado lia "Os quatro acordos" de Miguel Ruiz. Ficou curiosa. A voz serena de Jonathan era encantatória. Os olhos muito azuis, um enigma. Assim lhe soavam as palavras que a angustiavam. Afinal não era assim tão estranho o que sentia. A sua dificuldade em viver no emprego. A estabilidade que de vez em quando era posta em causa pela competição a que estava sujeita. Era menos habilitada que os colegas. Apenas detém o grau de mestre. Mestre, mas pouco, no cumprimento das regras para subir na carreira de engenheira dos materiais.
            O holandês ofereceu-lhe os quatro acordos. Huyen agradeceu, dando-lhe o único livro com que saíra de Boston - essa terra então longínqua. "A vida nos bosques", de Henry Thoreau. A sua bíblia na empresa de auto-conhecimento.
            Para além da partilha literária, Huyen e Jonathan transformaram a solidão das noites anteriores num abraço nocturno, tão longo como as sete noites que Huyen ficou ainda no Panamá. As lágrimas escorriam, lavando-lhe a alma, quando compreendeu que o caminho a percorrer só ela o poderia pedalar.
            Está em Bucaramanga, Huyen. Atravessa o teleférico de Chicamocha. A viajante anónima escutou deslumbrada, a história da mulher corajosa. Amanhã Huyen voltará à Mesa de Los Santos. Pedalará desde Bucaramanga. Acampando sob o céu estrelado, continuará a desformatar os acordos sociais. A cada dia sobre a bicicleta, a cada subida, a cada descida, uma convicção que se desvanecerá. A cada manhã, uma nova Huyen. Em cada subida um passo no conhecimento dos seus limites, de si. A cada paragem, um nova pessoa que se encantará com a sua força. Como esta viajante solitária que se observa, inspirada, compreendendo que há tanto, mas tanto a aprender... Quem sabe, também pedalando.

21 de Junho, 2105


Iguaque, Colômbia 

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