Borboleta azul índigo


O primeiro deslumbramento foi na Estrada da morte, em La Paz. Novembro de 2014 - descia de bicicleta aquela que dizem ser a estrada mais perigosa da América do Sul.* Actualmente está encerrada ao trânsito. As mortes que aí aconteceram durante décadas obrigaram à construção de uma via mais segura. Apenas os ciclistas mais afoitos, ou que assim se sintam, se aventuram a percorrê-la com mais ou menos velocidade.
Ia na esgalha. O vento no rosto era uma sensação saborosa. Apenas um vislumbre. Apenas e tanto. Desde então os meus olhos procuram sempre por mais esse azul a esvoaçar. Aquele que uma borboleta azul índigo, maior que a minha palma da mão, me ofereceu. Voava, cruzando o meu caminho. Longe do oceano Pacífico, a vegetação exuberante era o cenário para pedalar a 125 azul em direcção à morte. É inevitável. O azul do céu é efémero. Assim como é efémera a borboleta morpho peleides. A imagem dessa borboleta gravou-se na íris.

Com ou sem nuvens, o céu azul tranquiliza-me. Com ou sem ondas, o azul do mar inspira-me. Tenho a sensação que a minha vida está plena de instantes azuis. Gosto do azul real, do azul índigo, do azul celeste. Gosto dos setes azuis que metamorfoseiam a Lagoa de Bacalar, do azul das águas cálidas que contrastam com o frio glaciar da Lagoa de Reiquejavique. Em voos mais ou menos longos, as asas do avião cortam sempre um novo céu... azul.
Foi apenas no início de 2013, em Melbourne, que pela primeira vez me apercebi que as tonalidades do azul são passíveis de se distinguirem consoante o lugar e a estação do ano. Se até aí não me cansava do azul do céu, desde então comecei a desejar tocar cada um dos tectos das cidades e vilas, montanhas e vales, praias e rios por onde tenho vagueado.
As asas daquela borboleta permanecem na minha memória visual.
Este ano regressei à América Latina. Em cada borboleta um sinal divino. Os pensamentos que povoam o meu caminho são um labirinto nem sempre azul. Aceito essa prolixidade. Suponho que seja natural que o antes e o depois me continuem a habitar, sobretudo quando os pés pisam o caminho em direcção a novos lugares. Em cada pequena decisão para o futuro (sempre muito próximo) reparo numa borboleta. Não é exagero. De tal modo me sinto confiante, que um sorriso se desenha. Se uma borboleta surge no meu caminho, um sorriso sela o pensamento. Fica resolvido e prossigo o mais consciente que me é possível. Ainda muito a aprender, ainda um longo caminho até à totalidade do presente.

A borboleta morpho peleides visita-me amiúde. É com frequência que o meu olhar capta esse insecto, transmitindo informação aos neurónios que em sobressalto entram em sinapses contínuas. A pele arrepia-se, o sorriso rasga-se, o ritmo cardíaco acelera. Quase salto como uma criança deslumbrada em cada borboleta azul. Dádivas a que o corpo reage num agradecimento somático.
A última vez que tal ocorreu foi há uma semana na floresta tropical do parque Corcovado. O mar de água cristalina reflectindo o céu limpo contrastava com a vegetação densa da floresta. Algumas árvores estavam unidas entre si, abraçando-se mutuamente - o que eu vi. O guia explicou. São árvores que se asfixiam umas às outras, como que se engolindo em pura competição. Prefiro a realidade que os meus olhos percepcionaram sob o azul resplandecente da Costa Rica. Outro azul enchia os meus olhos. O das borboletas morpho peleides. Os dedos das mãos não foram suficientes para as contabilizar. O oceano Pacífico enviava ondas numa melodia perfeita, acompanhada das vozes incansáveis das lapas. Os grilos gigantes quase despertavam os morcegos bebés que dormiam enroscados nos colos providenciados pelas folhas imensas.
A cada passo um sorriso infantil. Uau!, um pelicano. Uau!, um tucano. Uau!, um macaco aranha, nas Ceibas e Pilons. Troncos tão altos como largos. De focinho a esgravatar o solo, as famílias de quatis deliciavam-se com os caranguejos que encontravam. De quando em quando, as borboletas multicolores despertavam a minha consciência que de quando em vez se esvaía. As asas do tamanho das palmas da mão mantêm-se em mim.

Quem sabe ganhe coragem e me decida a gravar na pele uma borboleta azul índigo. Quem sabe as suas asas me relembrem como efémera é a existência e como a transformação é um acto contínuo. Quem sabe a magia me envolva e eu toque no céu nocturno, encontrando-me com as estrelas.  



2 de Outubro, 2015
Cidade do Panamá, Panamá

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