Cruz del Sur




Ao quarto dia em San Pedro de Atacama marquei a viagem desde Lima para Bogotá. No início de Novembro de 2014 cheguei ao Chile com intenção de ficar duas noites no deserto mais seco do mundo. A quietude encantada da beleza, tão lenta quanto terrível, provocava-me uma inércia difícil de combater. No céu azul, as meadas de nuvens flutuantes irradiavam um brilho que me paralisava. Até que cheguei à conclusão que, só marcando a viagem para o destino final a que me propusera, teria um estímulo para arrepiar caminho.
Ao fim de uma semana conseguia finalmente despedir-me – não para sempre – do lugar que mais se adentrou em mim até esse momento: o Salar de Tara. Voltei ao Peru, dirigindo-me para Arequipa, sabendo apenas em que dia deveria estar em Lima para voar para a Colômbia. Também nessa cidade do Peru deixei poisar os bichos carpinteiros por uma semana. Quer dizer, mais ou menos; pelo meio fui arrebatada pelas paisagens e condores do Colca Canyon.
A insolência dos bichinhos que em mim habitam é refreada, pelo menos por alguns dias, quando as pessoas são tão ou mais encantadoras que os lugares onde este corpo descansa, acendendo uma lâmpada no coração. Por essa razão, saí de Arequipa apenas na véspera do voo desde Lima. Também apenas na véspera dessa véspera adquiri o bilhete de autocarro para a capital do Peru, através do sítio virtual da agência Cruz del Sur. Esperavam-me catorze horas de autocarro. O bilhete incluía jantar e filmes e paisagens deslumbrantes enquanto o dia sorrisse por dentro e por fora de mim.
Ao cair da noite, passava um documentário sobre Cantiflas. A lua guiava-nos com a sua luz porosa, resgatando-me ao assento número nove. Quando vi o actor mexicano no écran, a pele dos braços eriçou-se: dias antes conhecera Guilherme – o proprietário do restaurante vegetariano, Mandala, onde almocei diversas vezes enquanto em Arequipa. Guilherme, um senhor cuja fisionomia me fez soletrar o passado de uma infância risonha, marcada pelos filmes daquele cómico mexicano (foi o meu Tio Manuel quem me deu a conhecer esses filmes no cinema do Foco).
Este espírito borbulhante foi interrompido quando o hospedeiro de bordo subiu ao segundo piso do autocarro. O mesmo jovem fardado e de laço aprumado, que anteriormente distribuíra o jantar – para mim uma sande vegetariana com um sumo de laranja e um biscoito –, trazia agora cartões para todos os passageiros que desejassem participar no jogo nocturno – o Bingo! – e assim habilitarem-se a ganhar outra viagem de autocarro com a Cruz del Sur.
Apesar de estar de saída do Peru, aceitei de bom grado um cartão vermelho, com a sombra de um sorriso irónico. Estava curiosa. Além disso, só experimentando se experienciam emoções e sensações – o mesmo é dizer, para mim, que havia que me libertar de preconceitos e pretensiosismo e deixar envolver-me pelo ambiente de boa-disposição dos simpáticos peruanos.
O meu companheiro de lugar ajudou-me a compreender uma ou outra expressão; de vez em quando o hospedeiro lançava perguntas ao estilo de trivial pursuit, em relação às quais eu reagia muito rapidamente com o braço no ar. Divertia-me a olhos vistos. Mais do que isso, a dada altura observei-me em expectativa. A de quem desejava fazer linhas e até mesmo gritar Bingo! Não que me interessasse ganhar um bilhete; mas quando se entra no jogo – falo por mim, como é óbvio –, existe (quase) sempre a vontade de ganhar – independentemente de nos apaziguarmos com as palavras: o importante é participar. E, com efeito, o importante foi participar e escutar ‘linha’ muitas vezes em espanhol, inclusivamente desde a minha própria boca, e muitos risos com as palavras puras desfolhando relâmpagos de motivação, por parte do muito empenhado hospedeiro. Um verdadeiro animador de viagem, cuja duração tinha tudo para ser um tédio e uma valente canseira – o que não se veio a verificar.
O autocarro veio ao rubro quando o rapaz fardado sentenciou à jovem vencedora do Bingo que o seu prémio teria de ser muito merecido. Não lhe bastava ter todas as janelas do cartão vermelho abertas: era imperioso provar a sua vontade de viajar novamente com a Cruz del Sur pelo maravilhoso país do Peru.
O público aplaudiu o apresentador e até assobiou quando os seus lábios sopraram: “Tens de cantar uma canção; podes escolher”. A jovem peruana não se fez rogada. Aclarou a garganta e iniciou a cantoria em falsete. O que logo corrigiu quando os restantes passageiros se lhe juntaram, mostrando que sim senhora, ela era digna da vitória e do respectivo prémio.
Também eu ganhei e muito; várias gargalhadas fazendo jus à publicidade da Cruz del Sur: El placer de viajar en Bus!



Janeiro, 2016
Matosinhos, Portugal

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